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Crónicas

Orçamento da Autonomia Socialista da Grande Laranja

O Orçamento da Região Autónoma da Madeira para 2025 não é, como se tenta fazer crer, um instrumento de governação. É um folheto de propaganda técnica, um catecismo de autoflagelação fiscal onde se venera a despesa, se canoniza o subsídio e se transforma a dívida em acto litúrgico. Trata-se de um exercício de ilusionismo onde o Estado Regional já não é gestor, mas operador de um casino onde o dinheiro gira entre mesas viciadas, sempre em direcção às mesmas mãos.

Este orçamento é, na verdade, uma missa. E como qualquer missa de aldeia decadente, há o padre (o Governo), os acólitos (os secretários e directores regionais) e a assembleia de fiéis (os funcionários públicos e os dependentes do aparelho). Reza-se muito, promete-se mais, e no fim todos saem com a certeza de que nada mudou. O que interessa é manter as aparências: progresso, investimento, justiça social. Palavras grandes para esconder uma realidade cada vez mais mesquinha e parasitária.

A filosofia que sustenta o documento é uma só: o medo. Medo de reformar, medo de mexer no que está, medo de perturbar o equilíbrio das fidelidades e das influências. Por isso, tudo continua como antes: os subsídios mantêm-se, os investimentos incham, a dívida cresce. Nada se corta. Nada se confronta. Tudo se distribui, se acomoda, se repete. Governar, aqui, é prometer que ninguém perderá nada, nem que, para isso, se perca tudo.

A fiscalidade é um faz-de-conta. Apresentam-se reduções no IRS como se se estivesse a criar um paraíso fiscal no Atlântico, mas mantém-se uma progressividade sufocante, um emaranhado de regras que dissuade qualquer tentativa de independência económica. O IRC, por sua vez, continua a punir quem arrisca: taxas instáveis, derramas regionais absurdas, nenhuma clareza. Fala-se em startups, mas o regime é inimigo da liberdade empresarial. O único ecossistema que prospera é o dos ajustes directos.

Depois há a dívida. A Madeira endivida-se como quem respira. O orçamento autoriza empréstimos por meio século, como se o futuro não existisse, como se as gerações por vir tivessem apenas o dever de pagar as rendas do presente. Dívida para salários, dívida para buracos, dívida para mostrar que se governa. E a palavra “contenção” aparece, claro, mas apenas como enfeite. A fazer de conta.

A cultura, essa que podia ser espaço de liberdade, é tratada como adereço decorativo. Apoiam-se os projectos que não incomodam, financiam-se os grupos previsíveis, elegem-se os artistas pela lista de presenças nos jantares com secretários regionais. Cultura de conveniência. Nada se liga às escolas, à leitura, à criação contemporânea. Tudo passa pela secretaria. O que escapa, não existe.

No investimento público, o PIDDAR é um catálogo de intenções ocas. Não há análise custo-benefício, não há metas mensuráveis. E sempre as mesmas empresas, os mesmos contratos, os mesmos rostos nas adjudicações. É a roda das obras. É o ciclo da obra pública como pretexto de governação.

O apoio social tornou-se o narcótico da autonomia. Dá-se por tudo e por nada: juventude, habitação, clubes, festas, bandas. Há subsídios que se renovam sem avaliação. Outros que se paga antes de haver projecto. Outros ainda que servem para tapar dívidas do passado, com a bênção do presente. Nada se mede. Nada se avalia. O critério é a utilidade eleitoral, não a eficácia social.

A habitação é o exemplo perfeito: imóveis cedidos gratuitamente ao IHM, que depois os transforma em favores. Cooperativas amigas, listas opacas, distribuição por proximidade política. Não há modelo de mercado, não há incentivos ao arrendamento livre, não se promove a propriedade. Cria-se uma classe de dependentes: os arrendatários do regime. Gente que deve a casa ao partido. E por isso, deve também o voto.

O funcionalismo público regional é um bordado laranja. Concursos internos que mais parecem nomeações, progressões automáticas, promoções sem mérito. A avaliação de desempenho é um ritual sem consequência. As empresas públicas vivem da subvenção, pagam salários de luxo, acumulam prejuízos com a tranquilidade de quem sabe que, no fim, alguém paga. E esse alguém é o contribuinte anónimo, sem cartão, sem acesso, sem influência.

A juventude é instrumentalizada. Fala-se de apoio, mas apenas para manter a aparência. Valorização profissional? Iniciativa empresarial? Nada. Só programas, estágios, vales de formação. Promete-se um futuro para que ninguém repare no presente. O empreendedorismo é uma palavra. O risco é punido. A burocracia afoga. E todos os dias, os mais capazes fazem as malas.

A inovação é tratada como ornamento conceptual. Não se fala em zonas tecnológicas, nem em atracção, nem em simplificação regulatória. Não há estímulo ao investimento, nem se menciona fiscalidade digital. A Madeira podia ser um laboratório de futuro, um espaço de experimentação, um arquipélago de risco e recompensa. Mas não. Prefere-se a rotina, a mesma que se escreve todos os anos nos documentos orçamentais como quem copia os trabalhos de casa dos anos anteriores.

O orçamento permite ao Governo mudar tudo sem consultar ninguém. A Assembleia Legislativa é um palco de figurantes. As cativações são teatrais. A fiscalização é simbólica. Os contratos-programa são renovados por osmose. A Inspecção de Finanças é um cão coxo a correr atrás de um comboio que já passou. E quando se pede responsabilidade, responde-se com fotografias de secretários sorridentes ao lado de viadutos, túneis ou bananais.

A autonomia, neste regime, não é liberdade. É controlo. É a capacidade de gastar o dinheiro de Lisboa com a assinatura da Quinta Vigia. E quando o dinheiro falta, grita-se: “Lisboa falhou connosco.” Quando há sobra, distribui-se aos amigos. Autonomia, aqui, é a institucionalização da dependência com sotaque regional.

Este orçamento é um reflexo fiel de uma autonomia que perdeu a coragem de ser. Já não é um projecto político, é uma rotina administrativa. Governa-se para manter, não para transformar. E manter, neste contexto, é garantir que nada mude, que os lugares continuem ocupados pelos mesmos, que os circuitos de financiamento permaneçam intactos, que os mecanismos de controlo estejam bem oleados. A lógica é simples: quem está, fica. Quem tenta entrar, espera. E quem contesta, é banido.

A saúde continua afogada em promessas. Promete-se eficiência, mas perpetuam-se listas de espera. Anuncia-se investimento, mas faltam médicos e material básico. A política de saúde tornou-se uma campanha permanente, com inaugurações de equipamentos e anúncios de milhões que nunca chegam ao doente. A saúde tornou-se espectáculo, e o doente, figurante.

A educação está presa ao passado. Currículos desactualizados, escolas degradadas, professores desmotivados. Nada se faz para transformar a escola pública num espaço de excelência. Finge-se inclusão, mas abandona-se o mérito. Fala-se em digitalização, mas não há internet rápida nas salas de aula. A educação tornou-se mais um instrumento de propaganda do que de progresso.

O turismo, motor da economia regional, vive na corda bamba entre o sucesso estatístico e o fracasso estratégico. Os números crescem, mas a qualidade estagna. Investe-se em promoção, mas não em diversificação. Os trabalhadores continuam mal pagos, a pressão sobre o território agrava-se, e o risco de saturação é evidente. Mas o orçamento continua a financiar brochuras, eventos e voos, como se o milagre fosse eterno.

Nada disto é acaso. Tudo resulta de uma escolha: a escolha de manter o poder a todo o custo, mesmo que o preço seja o futuro. Este orçamento não é apenas mau. É um obstáculo. Uma barreira entre a Madeira que temos e a Madeira que poderíamos ter, uma ilha aberta, livre, criativa, moderna. Uma Madeira que ainda está por nascer, porque o regime tem medo de a deixar nascer.

A alternativa existe. Um orçamento com coragem teria cinco pilares (não refiro mais por evidente falta de espaço): 1) Autonomia fiscal e simplificação radical; 2) Descentralização verdadeira, com contratos de desempenho municipais e orçamentos vinculados a resultados; 3) Desestatização da habitação, com estímulo ao arrendamento livre e liberalização do uso do solo; 4) Cultura como ecossistema independente, com financiamento plural e estímulo ao mecenato; 5) Regime especial de inovação, com regiões francas digitais e atracção de talento estrangeiro com tributação reduzida. Tudo isto é possível. Já foi feito noutros lugares. Falta apenas vontade política e uma coisa ainda mais rara na Madeira: visão.

A verdadeira reforma não se faz com promessas ocas nem com planos reciclados. Faz-se com escolhas claras, com coragem política, com compromisso com a liberdade e com o futuro. Enquanto esse dia não chegar, continuaremos a ter orçamentos como este: documentos longos, linguagem vazia, ideias gastas, e uma certeza deprimente: tudo continuará igual, até que alguém tenha a ousadia de rasgar o papel e começar de novo.

OSZAR »