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Crónicas

Duas tardes por semana

As festas nas discotecas e hotéis não eram lugar para uma adolescente e a ginástica fizesse na escola ou subisse várias vezes os degraus da entrada. Fazia o mesmo efeito, tinha ouvido a um médico num daqueles programas da rádio

O mundo dividia-se entre as pessoas que iam às matinés de sábado à tarde nas discotecas e as outras que, pela mesma hora, mudavam a roupa de cama, sacudiam tapetes e ouviam música a tocar nos gira-discos dos vizinhos. Eu fazia parte deste grupo e, enquanto alinhava os sapatos debaixo do guarda-fatos, lamentava a minha condição de excluída das festas das discotecas, dos bailes de carnaval nos hotéis e das aulas de aeróbica. A minha mãe disse não a tudo e virou as costas à minha indignação. As festas nas discotecas e hotéis não eram lugar para uma adolescente e a ginástica fizesse na escola ou subisse várias vezes os degraus da entrada. Fazia o mesmo efeito, tinha ouvido a um médico num daqueles programas da rádio.

Até podia ser, mas não era a mesma coisa do que ir a aulas numa sala com espelhos vestida tal e qual como a Jane Fonda ou a Olívia Newton-John no teledisco do Physical. Embora não soubesse bem como era, a ideia de ir duas tardes por semana a um ginásio afastava-me do tédio de casa e daquele tempo morto a ver os autocarros a fazer a curva no caminho. Eu tinha imaginado tudo, a roupa, a bolsa e até a maneira de pagar depois de uma conversa com a minha prima Ana num domingo à tarde, enquanto me mostrava como usar rímel nas pestanas e partilhava os perfumes caros. E podia ser, ela pagava e ainda me emprestava as revistas de moda em francês.

O dinheiro da minha prima Ana, a fada madrinha da minha adolescência, não foi suficiente para demover os preconceitos que, por esse tempo, moldavam o pensamento das pessoas e o modo de viver no Laranjal. A minha mãe nunca teve dúvidas sobre o meu direito a estudar e nunca imaginou um futuro sem uma profissão, mas sair de casa para ir a aulas de ginástica, ao café e ao cinema era outra história e mais difícil de justificar As raparigas não saíam assim, sem companhia e por motivos estranhos sem arriscar a reputação e gerar um falatório que, na cabeça da dona Celina, era desnecessário. E como é que ia explicar às senhoras dos bordados aquelas duas tardes por semana?

O empenho nos estudos gerava desconfianças e poucas faziam fé no sucesso; ir ao banho no Verão era coisa que já se fazia, até no Laranjal, mas os cafés tinham má fama e o desporto, fosse federado ou no ginásio, não parecia uma prioridade, nem elevava o estatuto de uma menina de família. Era um exotismo como os que eu haveria de trazer nos anos seguintes. A minha mãe ainda não estava preparada e, por isso, disse não e não se impressionou com as lágrimas e com a porta do quarto a bater com força, tanta força que ainda hoje acusa os efeitos das minhas fúrias contra a injustiça. O que havia de mal em ter aulas com música pop e em ritmo de dança? A resposta não obedecia à lógica, mas às regras cegas para as mulheres que, no tempo da minha adolescência, dominavam os nossos sonhos e decidiam por nós.

O mundo novo que subia pela encosta e entrava casa adentro pela televisão estava cheio de assuntos para os quais as regras antigas não tinham resposta. E na dúvida a decisão dos pais e das mães era não. Não se podia ir à ginástica fora da escola, não se podia acampar, nem ir de férias ao Porto Santo ou qualquer outro lugar sem a supervisão de um adulto e todas as festas estavam vedadas. Ou estavam vedadas a mim que, todos os sábados, via o meu irmão ajeitar o cabelo com gel e levantar a gola do casaco para se aventurar pela noite. Os rapazes podiam experimentar o desconhecido, aventurar-se e o esquisito era quando não o faziam. As meninas deviam ser bem comportadas e ocupar o tempo com tricô e croché.

Duas actividades para as quais me faltou o talento e a paciência; eu queria o mundo, as aventuras e estar onde estavam as raparigas e os rapazes populares do pátio da escola e não a arrastar o tédio da sala para o quintal e do quintal para o terraço, onde ficava a ver o entardecer com a sensação de que estava a ver a vida passar. É mais ou menos o que se sente na adolescência, quando nos falta idade para mandar nos nossos dias. O estranho é que agora, que decido o que faço, falta-me energia e vontade para ir duas tardes por semana para ir ao ginásio. Acho que estou em falta com aquela adolescente que chorou e esperneou para ir às aulas de aeróbica vestida como a Olívia Newton-John ou a Jane Fonda.

OSZAR »